Capítulo 4
- Maria Freitas

- 18 de out.
- 5 min de leitura
May
— Então foi assim? — May Song perguntou numa voz baixa e tranquila. — Vocês deixaram a herdeira Takahashi simplesmente saltar do meu dirigível?
Ela deslizou os dedos pelo mapa da antiga Etéria, pregado entre outros na sua parede. Aquele pedaço de pergaminho amarelado mostrava um mundo muito diferente do atual, era de antes da Guerra do Deserto.
Primeiro, May passou os dedos sobre Amaya, o continente a oeste, cercado por um mar profundo e traiçoeiro. A silhueta de Amaya era quase circular, com uma grande ilha em seu extremo norte. Naki, a deusa da Terra, governava as florestas densas do oeste, enquanto Tacruk, o deus das Pedras e das Montanhas, erguia seus templos nas rochas do leste.
— Ela… ela é uma Herdeira do Ar, né? — Estéfano perguntou.
May respirou fundo, cerrando os punhos com tanta força que as unhas arranharam a palma. Ela se virou para encarar os dois subordinados, ambos cabisbaixos e amedrontados. A culpa parecia cair especialmente sobre Estéfano, que coçava a cicatriz no pescoço e mantinha a cabeça quase enfiada nos ombros.
— Vocês ficaram com medo porque a princesa sopra um ventinho?
Wei pigarreou.
— Ela pegou todos de surpresa, May. A tempestade estava forte, quase não vimos quando ela correu para o convés.
— Quase não viram… — May repetiu, seu tom gotejando sarcasmo. Não gostava de se irritar com os garotos, eles eram jovens demais, assustados demais. Apenas crianças sem família que buscavam algum sentido na vida. Não deveria descontar a frustração neles. Mesmo assim…
Ela inspirou e expirou lentamente, olhando para as espadas sobre a mesa, lutando para não colocar fogo na cabine por puro impulso. Sentia o calor chamando por ela.
— Saiam daqui.
Os dois não esperaram uma segunda ordem. Saíram tropeçando na soleira da porta. May estava tão furiosa que seu maxilar doía. Morta, Rubi Takahashi não lhe servia de nada. Vaelith a queria viva.
Sabrina apareceu em seguida, a cabeleira ruiva caindo pelos ombros, o macacão utilitário manchado de graxa e marcando seu corpo curvilíneo. Ela ainda segurava as luvas de couro na mão esquerda, e May percebeu a preocupação em seus olhos azuis de euraiana.
— Você precisa se acalmar — Sabrina falou, mansa e firme. Sempre autoritária, do jeito que May gostava. — Se continuar jogando essa raiva em todo mundo, vai matar a tripulação de medo.
— Era só manter a porra da Takahashi aqui dentro, custava tanto assim?
— Você também não conseguiu mantê-la aqui. Não dá para culpar os garotos.
Afiada como sempre.
May cruzou os braços, virando o rosto para uma das janelas estreitas do gabinete. Via o céu agora quase limpo, exceto por nuvens baixas. O dirigível se mantinha em um voo mais calmo, ainda que as hélices rangessem de vez em quando.
— Não posso ser paciente. O Vaelith não é paciente — murmurou, com um leve tremor na voz.
Sabrina se aproximou e esticou o braço para tocar seu ombro. A diferença de altura amoleceu o coração de May.
— Nós vamos dar um jeito. Pegamos ela uma vez e podemos pegar de novo. Só… não esquenta essa sua cabeça, porque ela já é quente o bastante. O importante é que ninguém se machucou, apesar do susto.
May cerrou os dentes, evitando olhar para sua melhor piloto.
— É que essa porcaria de acordo… — Fechou os punhos. — Só quero manter esses moleques vivos. Quero que eles voem, lutem e se rebelem por muito tempo.
— E eles vão. Eu já disse, vamos pegar a garota.
— Já sabe onde ela caiu?
Sabrina foi até um dos mapas na parede e apontou para a fronteira oeste de Körin, no Estreito do Imperador.
— Estávamos sobrevoando algum lugar perto de Hökanami, mas o vento estava muito descontrolado, pode ter nos levado para leste ou oeste, não tenho como saber. Eu estava concentrada demais tentando nos manter no ar.
May analisou o mapa.
— Isso é muito perto da fronteira.
— É onde você me mandou ir.
— E desde quando você faz o que eu mando?
Sabrina respondeu com uma risada.
— Às vezes eu faço.
A líder rebelde analisou o mapa de novo. Minéria era o último lugar onde Rubi Takahashi poderia cair. Os minerianos eram duros como as rochas de Tacruk. Se Rubi caísse nas mãos deles, dificilmente sobreviveria às famosas torturas dos Herdeiros da Terra.
— Vou preparar o avião para uma busca — Sabrina sugeriu. — Posso sobrevoar as áreas próximas. Pode ser que ela tenha sobrevivido…
— É uma região de muitas montanhas e mata fechada.
— Eu consigo, May.
E conseguia mesmo. Sabrina parecia ter nascido para voar. Em outra vida certamente teria sido um pássaro.
— Faça isso. Mas peça aos nossos informantes em Minéria para manter os olhos abertos. Se ela caiu no território deles, talvez alguém tenha visto.
Sabrina aquiesceu, apertando de leve o ombro de May. Quando saiu para transmitir as ordens à tripulação, a líder rebelde permaneceu imóvel, encarando a porta fechada. Precisou de um instante para se recompor, pois o calor em seu peito latejava. Um fogo antigo se agitava em suas veias.
Quando ficou sozinha, a cabine escureceu. Uma sombra se moveu num dos cantos, gelada e silenciosa, parando em frente aos mapas.
May se inclinou numa reverência, a mão sobre o coração.
— Vou encontrá-la, eu juro. — Manteve os olhos baixos, como se falasse com um rei. — Confie em mim, não vou falhar de novo.
A sombra se mexeu. Uma pontada de dor no peito a lembrou do pacto que havia feito para proteger sua tripulação.
— Vou encontrá-la… — repetiu, quase num sussurro, apertando os punhos ao lado do corpo.
Um sopro de vento sacudiu os papéis na mesa. A sombra recuou pouco a pouco, escoando-se pela fresta da porta como uma névoa. May ergueu a cabeça, ofegante, o olhar fixo no ponto onde ela sumira.
Assim que a luz voltou, a rebelde afrouxou os ombros, limpando uma fina camada de suor na testa com a manga do terno. O tecido ainda conservava o cheiro cítrico do perfume que usara para seduzir Rubi, mas agora aquele aroma parecia podre.
Maldita Takahashi.
Passou a mão nos cabelos pretos e muito lisos, soltando-os um pouco mais. Caminhou em direção à mesa, onde as suas espadas repousavam — lâminas longas e curvas, afiadas a ponto de cortar um homem em dois. Era um presente do Mestre Song, mas fazia tanto tempo que nem se lembrava mais. Tinha sido resgatada por ele, doente e muito ferida, trabalhando em uma das fábricas em Stashi. Ela não tinha nome, nem casa, nem história. Era só uma coisa pronta para ser devorada pela ambição dos Takahashi.
Uma coisa pronta para se vingar.
Vestiu um sobretudo por cima do paletó amassado e saiu do gabinete. O barulho de hélices e motores indicava que Sabrina já estava preparando o avião. Ainda havia esperança de recuperar Rubi Takahashi — e, com ela, tudo o que May precisava.
Não vou falhar, repetiu para si mesma, descendo a escada de metal que dava para o corredor principal. Precisava provar seu valor para a sua tripulação e, principalmente, para o deus das Sombras. Precisava provar que May Song não desistia, não se curvava. E nunca perdia.

Comentários