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Capítulo 3

Rubi


O sol da manhã iluminava os contornos acidentados de Minéria, revelando uma paisagem que, aos olhos de Rubi Takahashi, parecia rudimentar e hostil.


Os soldados minerianos a conduziram silenciosamente por trilhas de terra e pedras escorregadias até avistarem uma vilazinha sem graça, que não passava de meia dúzia de casinhas brancas espalhadas aos pés de uma montanha de pedra. As ruas — se é que dava para chamar aqueles becos de ruas — estavam cheias de lama, poeira e vestígios da tempestade, os telhados das casas pequenas haviam sido arrancados, e o cheiro de terra pairava no ar.


Que pesadelo!


Eles contornaram a vila pelos morros, numa descida que os aproximava cada vez mais das casas, ainda que escondidos, certamente para não chamar a atenção dos moradores. 


E se Rubi gritasse? Seu corpo chegou a inclinar para correr, mas ela deu por si quando notou uma pintura enorme, maior que a copa das árvores, no que parecia ser o centro da vila. Nela, o rosto severo de uma mulher, a pele do povo nativo de Amaya, os cabelos muito escuros e longos. Ao apertar os olhos, Rubi conseguiu ler:


Rainha Eterna, a Mãe do Povo.


Havia algo de irônico naquilo: uma mãe que deixava seus filhos vivendo numa pobreza gritante. Minéria estava arruinada. Aquele era o momento ideal para Körin invadir e tomar aquelas terras de vez.


A capitã Steinbachi seguia à frente, sem abrir a boca para dar explicações. Apenas indicava com um gesto aqui e ali quando deviam virar à esquerda ou desviar de algumas raízes. Ela mantinha a postura ereta, o uniforme escuro exibindo os botões metálicos agora opacos por respingos de barro. Os cabelos pretos curtinhos, raspados nas bases, mostravam sua nuca, onde Rubi via o final de uma tatuagem que, certamente, começava nas costas. Quis ver o que estava desenhado ali.


As casas foram deixadas para trás.


— Pra onde estão me levando? — Rubi imaginou que seria levada para um matadouro ou prisão. A torre de vigia se erguia no alto do morro onde estavam e ela pensou que seria aquele o último lugar que veria.


Em vez de subirem, eles desceram. Rubi entendeu que tinham chegado quando seus pés escorregaram na lama e ela quase caiu em um quintal amplo. Um dos soldados loiros e branquelos a segurou pelo braço e a guiou até uma varanda. 


— Entrem. — A capitã parou diante de uma casa branca. Era exatamente como as outras na vila, com o mesmo telhado marrom. 


Não era tão pequena quanto a maioria e, quando Rubi olhou para trás, viu que o quintal realmente terminava na mata densa que se estendia até os pés do morro. Havia uma cerca de madeira nas laterais do lote, mas não nos fundos.


Tudo bem, ninguém invadiria uma casa cheia de soldados, mas… e os bichos?


Ela afastou aquele pensamento e olhou para cima. A casa ficava na mesma linha que a torre de vigia lá em cima e a cerca de madeira se estendia floresta adentro, parecendo mais como uma demarcação de propriedade do que uma proteção contra invasores.


Rubi passou pela varanda e entrou pela porta dos fundos, para a escuridão de um corredor estreito, que levava a alguns cômodos. A capitã a guiou até a primeira porta da direita, que cedeu com um rangido. O cômodo claustrofóbico lembrava um depósito, mas era um escritório com uma mesa de madeira, pilhas de papéis e livros fedorentos. A parca iluminação vinha de um lampião e uma janela que deixava entrar raios difusos.


— Senta aí. — A capitã apontou para uma cadeira azul, e espantou os soldados com um gesto de cabeça.


Rubi cruzou os braços, desejando protestar, mas seu corpo doía tanto que achou melhor obedecer. Ela se sentou, mantendo o queixo erguido, as costas retas mesmo naquele assento desconfortável. Ainda estava enjoada pela queda e pelos machucados, mas não demonstraria fraqueza diante de nenhum mineriano.


A capitã se apoiou na beira da mesa.


— Eu deveria ter te levado direto para o Departamento de Segurança e entregado você aos meus superiores.


— Por que não fez isso? — Rubi respondeu. 


— Porque… — A mineriana hesitou, desviando o olhar para os papéis espalhados. — Achei melhor avaliar por mim mesma antes. Quero evitar problemas.


Rubi percebeu algo no ar. Steinbachi era um sobrenome euraiano, mas nenhum que ela conhecia. Óbvio que não, a mulher certamente era descendente do povo comum, se fosse uma Herdeira da Água, Rubi conheceria sua família. Mas aquela pele mais escura e os cabelos pretos entregavam parte da origem amayara.


— Gostou de mim, capitã? — disparou com sua habitual arrogância, forçando um sorriso que lhe doeu o rosto.


A mulher travou as mandíbulas.


— Não acho que seja um bom momento para gracinhas. Você sabe o que Minéria faz com espiões, não sabe?


Rubi se lembrou de boatos sobre as torturas em Minéria, pessoas enterradas vivas, plantas crescendo dentro do corpo, escapando pelos orifícios… gente que saía sem sequer lembrar do próprio nome. Um calafrio percorreu sua pele inteira, lembrou-se da morte do avô, mas manteve a pose altiva.


— Então por que ainda estou aqui, e não lá? — Rubi fez um gesto vago na direção da janela pequena que mostrava o quintal.


— Porque estou te dando a chance de colaborar comigo. — Era uma mentira deslavada. A capitã se inclinou, aproximando o rosto ao de Rubi. — O que veio fazer em Minéria? 


Rubi ficou em silêncio. Dava para ver que a mulher apertava o punho fechado contra a coxa, mas a körinense não sabia o que aquilo significava. 


— Certo. — A capitã bateu os punhos contra as próprias pernas. — Então você vai acabar respondendo para o Departamento de Segurança.


Ela começou a se afastar, mas Rubi segurou seu braço.


— Eu caí aqui.


— Caiu?


— Na verdade, me joguei de um dirigível. — Rubi ainda estava decidindo se contar sobre sua identidade era uma boa ideia. Talvez a capitã, ou algum dos soldados, pudesse ser comprada. Talvez a devolvesse para Körin se soubesse quem ela era.


Ou talvez a matasse ali mesmo.


Todos tinham percebido que era uma Herdeira do Ar, e não havia mais tantos assim. Ou seja, eles já sabiam que ela era de uma família importante.


Rubi esboçou um sorriso forçado e dolorido, observando a capitã esperar que ela continuasse. Em sua mente, já traçava rotas de fuga, calculando quantos soldados havia naquela vila, quantas passagens existiam, como desativar a barreira mágica. Se estava viva, era porque ainda tinha alguma chance de escapar. E, se fosse preciso, não hesitaria em enganar aquela mulher ou qualquer um que surgisse no caminho.


Porque Rubi Takahashi não se sujeitaria a ser refém por muito tempo. Não importava a dor no peito ou a ardência nas pernas, ela encontraria uma brecha.


— Fui sequestrada por um bando de rebeldes sem serviço. 


— Ah, é? — Steinbachi cruzou os braços.


— Minha família é bem rica, muito rica na verdade. — Rubi olhou para a arma no coldre da capitã. Era uma Yezi 40, ou 30 talvez. Não dava para ver o final do cano. Mesmo que não tivesse o grande T das Indústrias Takahashi, aquela era uma arma Takahashi.


— E?


— E, não sei, fugi de lá antes de me contarem o que eles queriam. Aproveitei a chuva para pular.


— De um dirigível, no meio daquela tempestade?


— Sou uma Herdeira do Ar. — Ela deu de ombros.


— Seria necessária uma habilidade nível três de dominação do ar para sobreviver a uma queda desse tipo. Poucos Herdeiros chegam a esse nível. — A capitã descruzou o braço e se aproximou de Rubi. O hálito quente, com cheiro de menta, atingiu seu rosto e fez seu coração acelerar. — Quem. É. Você?


Realmente, aquele não era poder para qualquer um. Mas ela não era qualquer um. Era…


— Takahashi. — Jogou o sobrenome no ar e viu, com certo prazer, os olhos da capitã se arregalarem. Foi só um lampejo, mas uma faísca de pavor surgiu ali. — Sou Rubi Takahashi.


— É algum tipo de brincadeira?


— É uma informação bem fácil de checar. Sempre apareço nas colunas sociais e… — Parou quando a outra virou de costas, a ouviu resmungar:


— Mas que merda… 


— Pois é, uma merda. Não acho uma boa ideia me mandar para o Departamento de Segurança. Meu tio não vai gostar muito.


Era prazeroso provocá-la, Rubi não conseguia nem conter o sorriso.


Aquela capitãzinha de fronteira não sabia com quem estava se metendo. 


— Eu não me importo nem um pouco em agradar o general Takahashi. — Steinbachi se sentou em sua cadeira acolchoada. — Pelo contrário, teria um prazer imenso em desagradá-lo. Tenho certeza que meus colegas do exército pensam igual. Mas a maioria deles não seria tão piedosa se colocasse as mãos em você. — Se inclinou para a frente, e Rubi viu ódio puro em seus olhos. Pela primeira vez, sentiu medo, a ponto de os ossos tremerem. — Aqui, senhorita Takahashi, seu sobrenome, sua família e seu dinheiro não valem nada. Não é isso que vai determinar se você é digna de viver ou não. Sou eu. E a única coisa que importa agora, para mim e para você também, é se você vai colaborar ou não. 


Rubi queria rebater, doía admitir que a capitã tinha razão. Com a guerra tão próxima, talvez a Rainha Eterna de Minéria tivesse mais prazer do que cautela em matá-la. Então, o melhor a fazer era manter a cabeça baixa.


— Vou — respondeu contrariada.


Mas só até descobrir o ponto fraco de Minéria. Só até descobrir o ponto fraco daquela capitã de olhos tão lindos e tão determinados. Afinal, Rubi já havia sentido uma rachadura no olhar dela — e qualquer rachadura, por menor que fosse, podia ser usada a seu favor.


Até a pedra mais dura de Minéria podia ser quebrada.


E Rubi a transformaria em pó se precisasse daquilo para fugir.





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