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Capítulo 2

Céu


A capitã Céu Steinbachi dividiu sua madrugada inteira entre desobstruir estradas e limpar as ruas. A vila ainda estava caótica por causa da tempestade, mas ela precisava checar os pontos da fronteira agora que tinha amanhecido, aquele era o seu trabalho.


— Capitã. — Alexander passava por ela com dois galhos enormes, um sobre cada ombro. O rapaz parecia um armário, alto, de ombros largos e braços grossos, mas ainda era menor que o irmão.


— Vou patrulhar a fronteira — ela falou. — Avise Álvaro e Linn, por favor.


— Sim, senhora — ele respondeu sem parar o que estava fazendo, descendo a rua para depositar os galhos no terreno de onde um caminhão do exército os tiraria depois.


A capitã seguiu na direção contrária, para o sul, rumo à barreira mágica que separava o Reino de Minéria do Império de Körin. Que protegia Minéria de Körin, ela se corrigiu. Pelo menos aquela era a propaganda.


Sem a Barreira de Naki, o reino estaria aberto para invasões do exército körinense, e para o contrabando de pedras e metais preciosos. Não que ele já não acontecesse. Körin sempre dava um jeito de continuar roubando as riquezas de Minéria.


Capitã — Linn a chamou pelo comunicador, a voz grave denunciando que havia algo errado. — Patrulheiros da Vila da Divisa viram um kairú ontem, antes da tempestade, vindo para oeste.


— Um kairú? — Céu parou de andar, engasgando com a própria saliva. — Na fronteira?


Foi o que eles disseram.


Céu levou a mão até o braço, onde ficava sua tatuagem. Kairús eram os guardiões das montanhas de Amaya, símbolo de Tacruk. Eles não eram vistos há anos, desde o massacre.


A capitã engoliu em seco e continuou andando.


— Vou mandar o Álvaro para o mirante depois que limparmos a vila. Um kairú na fronteira não é bom sinal.


Só… toma cuidado na mata, Céu — Linn disse, não como sargento, mas como amiga.


— Eles nunca aparecem de dia, fica tranquila.


Nunca se sabe. A tempestade de ontem não foi normal, os tempos estão esquisitos.


Céu avistou de longe o primeiro posto. A torre se estendia muitos metros acima das árvores, como um farol, absorvendo a magia que escapava da barreira mágica. Ela respirou fundo ao ver que a construção ainda estava de pé.


Então um gemido de dor a fez parar de andar. Céu sabia que não era um bicho. Ela seguiu o som, seus pés estalando galhos caídos, a respiração difícil na umidade quente da mata.


Uma pequena clareira redonda tinha se formado em volta do corpo caído no chão. Céu se aproximou lentamente, evitando pisar em algo que pudesse fazer barulho.


Era uma mulher. 


Os cabelos loiros, naquele tom quase branco, do povo de Osin. O vestido azul rasgado revelava arranhões na pele clara e deixava as pernas expostas. Ela era pequena e parecia frágil, mas levantou num pulo quando viu Céu.


— Quem é você? — perguntou numa voz doce, ainda que o tom fosse arisco.


— Eu pergunto a mesma coisa. — A capitã cruzou os braços, analisando os ferimentos da garota, o sangue escorrendo pela testa e pelos braços. Ela parecia ter caído ali. Mas caído de onde? — Quem é você e de onde você veio?


— Não vou responder nada pra uma soldado mineriana.


— Deveria. Sou a encarregada de… 


— Não me interessa. — A petulante bateu o pé na lama quase seca. A capitã analisou melhor as roupas, parecia um tecido caro e aquele tom de azul… A garota era körinense, tinha que ser. — O que me interessa é o que você está fazendo… 


— É capitã Steinbachi. Senhora para você.


Ela bufou com desdém.


— Você não faz ideia de com quem está falando.


— Você está em Minéria. Seu status em Körin não interessa. — Céu fez uma pausa e a encarou de um jeito duro, dando um passo para a frente. — Então vou perguntar de novo, quem é você e o que está fazendo aqui?


A körinense baixou os olhos até o coldre da capitã, e deu um passo para trás ao notar sua arma. 


Ótimo! Céu descruzou os braços, deixando à mostra parte do uniforme mineriano, uma jaqueta de corte austero em tecido negro, abotoada na diagonal com botões metálicos, com detalhes discretos em vermelho e um punho em verde-oliva próximo às mangas. A calça, também preta, estava enfiada em botas de couro que subiam quase até o joelho.


Céu deu mais um passo para a frente, ciente de que a estranha encarava as insígnias no ombro esquerdo — dois pequenos traços dourados marcando o posto de capitã. A curiosidade estampada no rosto da garota logo se transformou em algo feroz. Antes que Céu reagisse, uma rajada de vento estourou contra seu tronco, arremessando-a de costas num impulso brusco. Ela se estatelou no chão úmido, o ar escapando dos pulmões.


— Mas o quê…? — Tossiu enquanto tentava recobrar o fôlego. Com um gemido, se forçou a levantar, sentindo as costelas protestarem.


A jovem loira ofegava, as mãos erguidas. Céu percebeu que não estava diante de uma ameaça comum.


Era a porcaria de uma Herdeira do Ar.


Céu recuou e sua coxa latejou, a mão deslizando para o coldre, mas hesitando em sacar a arma. A garota piscava várias vezes, a respiração irregular, parecendo estar sentindo dor. Ainda assim, era perigosa.


— Não… — Céu mal terminou de falar e outra rajada avançou, sacudindo as folhas caídas e arrancando um pedaço do tronco de uma árvore próxima. A capitã se jogou para o lado, rolando no chão enlameado. Isso não é normal. As correntes de ar giravam sem controle.


Ela levou a mão ao comunicador preso na aba do bolso lateral do uniforme. 


— Ajuda na fronteira sul! — A voz saiu rouca, cautelosa. — Perto do Posto Três.


Certo, capitã — Linn respondeu.


Um rugido de vento soou mais forte ainda e o tronco rachado de uma árvore balançou violentamente. Céu não podia permitir que aquela garota destruísse todo o posto de energia.


A estranha deu meia-volta, correndo em disparada por entre as árvores. Céu xingou baixinho, se levantou e partiu atrás dela, o coração martelando contra o peito. 


Os galhos estalavam sob suas botas e a mata se abria num caminho quase natural em direção aos postos de coleta, a sombra da torre número três já estava sobre ela e Céu estremeceu ao imaginar o que aconteceria se aquela manipulação de ar atingisse as estruturas.


Ouviu os passos pesados e velozes de seus soldados. Linn na frente, como sempre, e os gêmeos atrás feito duas montanhas.


— Capitã! — Linn gritou.


— Precisamos contê-la! — Céu apontou para a garota que parecia querer se esconder atrás da torre.


Isso não é bom.


A garota virou o rosto e ergueu as mãos de novo, uma série de correntes de ar varreu o local. O vórtice de vento ricocheteou na base do posto de energia, arrancando placas metálicas e estilhaçando a alavanca principal que ancorava a torre. A estrutura estremeceu. As hélices no topo, projetadas para captar e armazenar magia, começaram a girar em falso, rangendo de modo sinistro.


Céu prendeu a respiração quando um clarão verde se espalhou pelas engrenagens da torre. Pedaços de metal voaram, lançando faíscas e quase atingindo Linn, que se jogou no chão.


— Droga! — Alexander protegeu a cabeça com o braço. 


Um estampido ecoou e parte dos painéis despencou, espalhando uma poeira esverdeada pelo ar.


A capitã pôde antever as severas punições militares que recairiam sobre todos se aquele posto fosse considerado destruído por negligência. Mas não havia tempo para lamentar: a garota tinha voltado a correr, tropeçando em galhos e musgos, rumo à fronteira. Se tentasse atravessar… Céu gelou só de pensar. A magia de Naki a transformaria em pó.


Que os deuses nos protejam.


— Estabilizem o que puderem da torre, eu pego a garota.


Em poucos instantes, Céu já emergia da vegetação mais pesada, no calor abafado do pós-tempestade. A barreira de Naki estava à vista, um muro translúcido que cintilava entre as árvores e subia até sumir no céu azulado. Era a mais pura magia da deusa da Terra, impenetrável.


E a magia de Naki, Céu sabia muito bem, não perdoava ninguém.


— Ei, para! — ela gritou, mas a körinense já tinha visto uma brecha entre pedras, e corria rumo à luz, alheia ao risco. Essa garota é burra ou o quê?


Céu se lançou para a frente. Cada músculo doía; a queda, as rajadas de vento, tudo tinha feito seu corpo protestar. Sentiu a umidade do solo, o cheiro de terra pesada, o gosto de suor e sangue. Precisava chegar antes.


Quando a garota ergueu o braço para passar, Céu se jogou em cima dela, apertando seu punho. Houve um clarão esverdeado e o sibilo da barreira mágica, como uma serpente enfurecida.


— Me solta! — a körinense urrou quando as duas foram jogadas no chão. 


A capitã estava decidida a não deixá-la morrer ali e segurava seus braços com firmeza no chão, para evitar que acionasse até mesmo uma brisinha.


— Essa barreira… te mataria. — Céu arfava, o coração latejando na têmpora. — Você não sabe o que está fazendo!


A garota hesitou, os olhos perdidos, desacreditados. Um filete de sangue escorria pelo canto de sua boca, misturando-se às gotas que ainda pingavam das folhas mais altas das árvores. 


Não era hora de pensar nisso, mas Céu não conseguia controlar o aperto no peito. Aquela era a mulher mais bonita que já tinha visto. Seus olhos pretos e monólidos eram suavemente erguidos nas extremidades. A boca parecia desenhada, o lábio superior um pouco menor do que o inferior. A pele muito lisa, sem marca nenhuma, o rosto oval, levemente alongado, o nariz reto e arrebitado. Linda demais.


E körinense.


Uma Herdeira do Ar.


Descendente da Ilha de Osin.


Uma inimiga, certamente uma espiã.


Um risco.


Quando tentou puxá-la para cima, a garota amoleceu, quase desmaiando. Céu a segurou contra o peito, sentindo o corpo frágil tremer. 


— Você… você não sabe de nada… — a jovem sussurrou, a voz falhando. 


— Pelo jeito, você também não. — Céu respirava com dificuldade. Lançou um olhar em direção à torre, que ainda lançava faíscas de energia esverdeada. Álvaro vinha na direção delas, os olhos arregalados. — Klein, me ajude a segurá-la. 


A capitã Steinbachi estudou mais uma vez o rosto da garota, procurando algum sinal de que fosse uma espiã körinense. Mas ela nem mesmo olhava nos olhos de Céu agora, apenas tremia.


— O que vamos fazer com ela? — Álvaro ajeitou o fuzil nas costas antes de se aproximar. 


Céu limpou o suor e a água que insistiam em escorrer da testa. A lateral de seu corpo doía. Não podia chamar seus superiores ali. Precisava mentir.


Ela tinha dado graças aos deuses por ter sido enviada para aquele fim de mundo, onde não chamaria a atenção de ninguém. Uma investigação seria o fim de seu segredo.


— Vamos levá-la para a Vila.





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