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Capítulo 1

Atualizado: 18 de out.

Rubi


A última coisa de que Rubi se lembrava era da garota linda com quem flertara no Takahashi Hotel. Seus cabelos pretos e muito lisos, o terno de linho meio aberto, mostrando parte dos seios, a postura de cafajeste. 


Elas flertaram, beberam juntas e depois… O quê? O depois sumia, perdido em algum lugar entre um drink e outro. Rubi passou as mãos pelo próprio corpo, ainda usando o vestido azul da noite anterior.


Ela tateou o colchão duro e esburacado até seus dedos encontrarem a borda da cama.


Rubi Takahashi conhecia todos os tecidos finos de Körin. Ela poderia nomear cada seda asaiana, cada linho raro, só de sentir a textura entre os dedos. Era capaz de conhecer o luxo em qualquer lugar, até mesmo naquela escuridão toda.


Aqueles trapos em que estava deitada eram repugnantes, feitos de uma lã tão áspera que irritava a pele. E o cheiro? Um fedor de ferro, poeira e graxa velha.


Torceu o nariz. Espirrou.


Onde estou?


Uma fresta de luz murcha e amarela escapava sob a porta, tímida, sem promessas. Rubi apurou os ouvidos para captar qualquer barulho que viesse lá de fora, mas só ouvia um ranger de aço, um sopro de engrenagem, como um bicho dormindo sob a terra.


Devagar, ela se levantou e caminhou até a porta. O toque gelado do metal deu um choque na ponta de seus dedos. Encontrou uma maçaneta, ainda mais fria, que não abriu ao ser girada. 


— Ei. — Rubi bateu com os punhos. O som morreu no metal. — Ei. — Chutou a porta. — Abre essa merda!


Pensou no vento. O vento sempre a obedecia. Poderia arrancar a porta do lugar. Mas… como mesmo? Sentiu o ar parado, pesado. Não lembrava.


A garota acordou! — gritou alguém ao longe.


Passos, firmes e rápidos, depois um clique, um ranger, e o clarão fez seus olhos doerem. Dois vultos se enfiaram no quarto — um garoto alto, outro robusto como pedra.


Eles a seguraram e ela se debateu. Não tinha força para escapar deles. 


Ainda assim, poderia incomodá-los.


Uma cicatriz enorme na lateral do pescoço de um dos garotos dava um medo do caralho. Gente bacana não tinha cicatriz assim. Gente bacana pagava curandeira de Minéria para limpar até espinha de adolescência. E curandeiras eram caras em Körin.


Será que são soldados minerianos?


Faltava só um empurrãozinho para as duas nações entrarem em guerra. E, ainda que um conflito desses fosse ótimo para as Indústrias Takahashi, Rubi tinha calafrios com a ideia de ver os Herdeiros da Terra de Minéria transformando Körin numa grande floresta.


Ela odiava mato.


Tentou se soltar de novo, sentindo cada músculo dos braços doer, mas os garotos nem piscavam, seus olhos fixos na luz no final do corredor.


— Me solta, caramba! — Rubi chutou e acertou só o vento. Caiu de joelhos no piso metálico.


Eles não se deram ao trabalho de erguê-la, apenas a arrastaram, como uma coisa, pelo corredor estreitado por paredes de chapas escuras. O ar viciado de graxa e óleo e o ranger constante de engrenagens lembrava um trem, só que mais abafado. Cansada, deixou o corpo pesar, o pescoço amolecido caído de um jeito desconfortável que a fazia olhar para as paredes.


Foi quando ela viu, pela abertura na fuselagem, o nada do lado de fora.


Um dirigível… Estava na merda de um dirigível.


Xingou baixinho. Para uma Herdeira do Ar feito ela, estar entre as nuvens não deveria ser tão aterrorizante. Mas era.


E aquele não era qualquer dirigível: sentia a oscilação, a altitude, o cheiro fétido de óleo barato. Era um Takai, um veículo aéreo de altas altitudes. Antigo, pelo desgaste do metal, mas um dos grandes.


Rubi conhecia todos os modelos de dirigíveis das Indústrias Takahashi. Também conhecia os aviões de guerra, os tanques, os carros. Cada arma e cada soldado mecânico que a empresa de sua família produzia esperando pela guerra inevitável, que nunca chegava.


Tentou se erguer para estudar melhor, mas o garoto da cicatriz forçou seu braço para baixo.


— Calma, princesa — ele tinha uma voz grossa para alguém tão novo.


— Cala a boca. — Rubi sentiu uma pontada de raiva. Pirralho!


Chegaram ao fim do corredor, a porta de aço foi destrancada com um estalo. Do outro lado, a sala era o lugar mais bagunçado que Rubi já tinha visto. Havia mapas pregados com tachinhas na parede, gavetas reviradas, um relógio (ou algo que parecia um relógio) preso de cabeça para baixo.


Ao fundo, recostada numa cadeira, a mulher do hotel. Rubi a reconheceu pelo terno meio aberto. Embora estivesse naquele ambiente sujo e precário, ela ainda parecia luxuosa. Ainda lembrava as pinturas de Vaelay, a deusa da Chama.


O tipo de mulher que destrói vidas… Mas Rubi nunca imaginou que seria literalmente.


Tinha caído no golpe mais antigo de Etéria.


— Perdão pelos métodos. — A voz da sequestradora era aveludada, gostosa de ouvir. Ela fez um gesto para os rapazes soltarem Rubi, e eles praticamente a jogaram no chão. — Cuidado, moleque!


— Desculpa, chefa — o garoto da cicatriz murmurou.


A mulher descruzou as pernas e se levantou, indo até eles.


— Você não pode ferir a herdeira Takahashi — ela disse, e Rubi notou os olhos negros e amendoados do povo de Asai, a pele escura de quem veio do deserto, centenas de anos atrás, procurando um lugar para viver após o cataclisma. — Eu sou a May Song. Líder rebelde.


— Líder rebelde… — Rubi debochou. Odiava heróis. — Vocês são um bando de gente à toa, isso sim. É falta de emprego? Tenho certeza que deve ter alguma vaga nas minhas fábricas.


May se aproximou, e Rubi sentiu seu perfume suave de flores cítricas. O mesmo cheiro da noite no hotel.


— Senta, vamos conversar.


— Não converso com criminosos.


— Você conversa com criminosos, princesa. — May voltou para sua cadeira, a mesma pose de cafajeste. — Sua família mata pessoas todos os dias naquelas fábricas. Crianças… 


— Ai, pelo amor de Zora. — Rubi colocou as mãos na cintura. — Estou pouco me lascando pra isso. Vá choramingar para o Imperador, não para mim.


Um lampejo de irritação passou pelos olhos escuros de May.


— Você é mesmo uma Takahashi — falou com desdém. — O que esperar da merda de uma Herdeira do Ar?


Ali estava, a mágoa mais antiga de Etéria. May Song era descendente dos asaianos, dava para ver nos olhos alongados como os de Rubi, mais arredondados e inclinados para baixo. E os asaianos odiavam a Ilha de Osin desde muito antes da invasão, odiavam seus avanços e sua superioridade.


Rubi não gostava muito de História, embora a conhecesse. Preferia mergulhar na engenharia muito superior que eles, osinianos, vinham desenvolvendo há milhares de anos. Ela tinha orgulho de ser uma Herdeira do Ar, tinha orgulho por sua família ter sobrevivido e cruzado os mares revoltosos depois que Osin afundou.


Ela era uma Takahashi, porra, não ia abaixar a cabeça para uma asaiana amargurada.


Rubi estava prestes a soltar outra provocação, quando todo o dirigível balançou de forma violenta. Mapas e papéis voaram, e a porta atrás deles se abriu com um estrondo. O barulho de vento e trovões encheu a sala, e o garoto da cicatriz correu para checar o painel de controle.


— A tempestade está piorando. — Ele lançou um olhar ansioso para May.


O alerta ecoou e, no peito de Rubi, algo vibrou.


Se havia tempestade, havia vento.


Se havia vento, havia chance.


Os olhos vasculharam a sala. Ali, na lateral, viu o caminho ao convés.


Era agora.


Rubi tomou fôlego e saiu em disparada, empurrando o garoto que tentou segurá-la. Ele quase caiu sobre a mesa, derrubando mapas e copos.


May gritou, mas Rubi já estava correndo pelo corredor estreito, sentindo o metal do piso tremer sob seus passos. O vento frio entrava em rajadas, machucando seu rosto. A cada solavanco, ela lutava para não cair.


Chegou ao convés aberto, onde um relâmpago iluminou as nuvens escuras de uma tempestade furiosa. O vento era tão forte que mal dava para se manter de pé. Isso vai dar muito errado. Mas ficar ali como refém era pior.


Atrás dela, vinham passos pesados. Muitos passos. Alguém gritava seu nome. Mãos tentavam agarrar seu corpo.


Ela pôs o pé sobre a grade lateral, fechou os olhos, orou pela proteção de Zora e pulou sem hesitar.


O ar cortava seu rosto e a chuva despencou tão forte que doía. O vento gritou, e ela gritou junto. Sentiu a queda, o desespero do vazio. No meio das gotas pesadas de chuva, algo dentro dela despertou e uma corrente de ar envolveu seu corpo, comprimindo-a numa espécie de casulo.


Um relâmpago riscou o céu, e um cheiro estranho de ferro inundou seu nariz. Rubi abriu os olhos o suficiente para ver as nuvens girando. A tempestade não perdoou. Rajadas violentas a jogaram de um lado para o outro e uma dor aguda atravessou seu peito. Ela choramingou baixinho, lutando para manter aquele casulo de ar, porém a dor era tão forte que quase a fez desmaiar.


Eu vou morrer.


Rubi atingiu o chão com um baque rouco, rolou sobre terra molhada e pedregulhos, engasgou com a água da chuva e tossiu, engolindo barro e sangue. A tempestade a chicoteava, e o peito ardia como se houvesse algo errado, muito errado, vindo de dentro para fora.


Ela se encolheu ali, sem conseguir se mexer, levantar e correr. O cheiro de terra úmida e ferrugem se misturava ao gosto amargo de sangue na boca. Quando ergueu os olhos, viu uma paisagem de rochas vermelhas e cascalhos, tudo açoitado pela tormenta. Cada golfada de ar doía, e a visão escurecia nas bordas.


Ai, que merda!


Ela não conseguia mais manter o foco, estava apagando. A consciência indo embora devagar, feito uma mãe doente.


Rubi Takahashi não conhecia o chão duro sob seus dedos, não gostava do cheiro daquela terra molhada. Era diferente demais, mineral demais.


Ela queria voltar para casa.





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