Prólogo
- Maria Freitas

- 21 de ago.
- 3 min de leitura
Atualizado: 11 de set.
Querido irmão,
Você ainda ouve os gritos? Eu ouço. A cada segundo, mesmo após todos esses séculos.
A memória é o vento, são as areias do deserto. É cada sorriso que criamos, cada amor que moldamos, cada esperança que alimentamos. É tudo o que deixamos para morrer.
Ainda sinto o mundo tremer como no dia em que Wata acordou os vulcões.
Onde você estava naquele dia? Vendo o chão se abrir e engolir cidades inteiras? Assistindo a terra cuspir lava e fumaça preta sobre o deserto e as montanhas? Vigiando as ondas que engoliram toda a Ilha de Osin?
Nós comemoramos quando o norte congelado que era Eurai ficou mais gelado? Ou lamentamos quando o deserto muito quente de Asai ficou mais quente?
Não me lembro mais.
A memória é traiçoeira, uma serpente que quer ser dragão.
Onde eu estava quando o rio Hanyang secou? Quando planta nenhuma cresceu? Quando nada mais nascia, e tudo morria?
Você estava do meu lado ou lutando em algum lugar? Tentou salvar nosso povo ou apenas se ajoelhou e lamentou como eu fiz?
Não me lembro.
Mas os gritos… Esses, sim, continuam aqui.
Nunca esqueço, Vaelith. Não consigo esquecer.
Foram os gritos que me fizeram ajoelhar mais uma vez sob os pés de Tacruk, para ouvi-lo repetir o de sempre em sua voz grave que balançava o mundo.
“Minha resposta para você é a mesma que dei a Wata”, ele disse na própria língua, estalada e grave. “Nunca criarei essas pedras.”
Implorei de novo, argumentei que queria apenas uma pedra. Apenas a minha. Que oferecia todo o resto do meu poder para isso. Mas a Montanha nunca cede. Ele temia que Wata roubasse o poder para si e, com ele, dominasse o mundo.
“Então coloque regras”, eu disse tolamente.
O que poderia ser tão desesperador a ponto de eu estar disposta a perder todo o meu poder? Por que eu faria algo assim?
Por causa dos gritos, Vaelith, eles nunca paravam.
Wata seguiria varrendo o mundo até afundar a todos nós. Primeiro Otau, depois Asai, depois Osin. E agora ela está em Amaya, transformando tudo em lama e desespero. Eu não aguentava mais ver nosso povo sofrer. Mil anos, Vae. Mil anos de guerra para eles terminarem entulhados no porão daqueles navios, ou no fundo do oceano. Para chegarem, cheios de esperança, a uma terra nova só para Wata tomá-la mais uma vez.
Não era justo.
Então contei a ele sobre a visão. Aquela… Eu te contei?
De que minha pedra salvaria uma garota, e que essa garota destruiria Wata.
“Você quer arriscar tudo por uma profecia?”, ele me perguntou, sem entender que não era por uma profecia, era por uma esperança.
Se tudo desse errado, as pedras seriam o fim de todos os deuses. E nós já vivemos tempo demais. Talvez seja a hora de deixarmos esse mundo para os mortais que criamos.
Ele me olhou com aqueles olhos de pedra e balançou a cabeça.
“Tem certeza?”.
Não me esperou responder.
Ele me apunhalou bem no meio do peito, fincando sua espada fundo enquanto meu sangue escorria pela lâmina e era absorvido por ela. Fraquejei, claro que sim. Senti a vida indo embora conforme o sangue escapulia de dentro de mim. Era tão lindo. Vi a pedra vermelha nascendo das mãos de Tacruk.
Um rubi feito de Éter.
O deus da Montanha forjou um colar bonito, feito de um ouro escurecido, e o colocou em volta do meu pescoço.
“Sem esse colar, você não terá força para manter um corpo”, ele disse. “Se tornará um espírito vagando pelo mundo, sem forma, sem memória e sem poder. Não o perca.”
Anos depois, o próprio Tacruk o roubou de mim.
Não confie nele, não confie em ninguém.
Guarde essa memória como um relicário, pois eu não posso guardá-la mais.
E, no momento certo, faça o rubi chegar até ela.
Te amo por cada areia do meu deserto, e cada estrela do seu céu.
Da sua irmã,
Vaelay

Comentários